Dedicatória
Prefácio
Intróito
A Virtude
O Amor
O Casamento E A Família
Trovas De Pero Botelho
Dísticos I A VIII
Dísticos IX A XVI
Dísticos XVII A XXIII
Graça Imortal
A Sabedoria Das Nações I A V
A Sabedoria Das Nações VI A XI
A Esmo
A
BULHÃO PATO
Poeta eminente e prosador insigne
«Faça-se justiça ao homem. Não foi ele o depressor da mulher. Foi ela...
«Fez-se carnal em todas as suas potências. Calculou com as lágrimas e com os risos; vendeu-se nos seus afectos e protraiu o grandioso da sua realeza, descretando que o turíbulo de seus perfumes contivesse mirra, incenso e ouro também. Constituída mercancia, esta engenhosa feitura de Deus tornou-se objecto de permutação, uma compra de contento, uma coisa de fastio, como o casaco usado, as pantolas velhas, e o chapéu do ano passado.»
Camilo Castelo Branco
«Deve temer-se mais o amor duma mulher do que o ódio dum homem.»>
Sócrates
«Não vale a pena escolher entre as mulheres. Porque valem todas o mesmo? Não; porque nenhuma vale nada.»
Plauto
Este livro era maior; mas a papelada em que se continha ficou-me,
esquecida, na gaveta dum feio quarto de hotel. Meses passados,
quando fui por ela, disseram-me que um vago «brasileiro»
de torna-viagem, meu sucessor no aposento, a levara para terras
de Santa Cruz.
A ser exacto o gorjeteado e solícito informe que a criadita da
poisada me prestou, o bom homem - se não encheu a mala com mais
valiosa bagagem - pouco apertado se há-de ter visto com as exigências
alfandegárias...
Impus então à minha irrequieta memória o justo castigo de reconstituir
o manuscrito; depois de mais espremida do que as uvas num balseiro, deitou
isso que aí vai e que será, se o for, uma escassa metade do primitivo
texto.
Escrevi o Canto da Cigarra após uma época de suculentas
leituras, com as quais intentei dar ao barco sem rumo da minha
impressionável sentimentalidade as sete amarras da Sabedoria e o pesado
lastro duma catedrática erudição. Foi um acessode bulimia científica em
que devorei a esmo, numa pressa voraz e sem a imprescindível mastigação
crítica, quanto de maior êxito se dava à estampa. Desfilaram sob os
meus olhos todos os machacazes do fecundo neo-renascimento italiano.
Passaram-me também à vista, mediante o binóculo das traduções francesas,
os luminares da sábia e fardada Alemanha. Ingeri, parágrafo a parágrafo,
o que as livrarias inglesas publicaram do miúdo e pertinaz Spencer;
não satisfeito ainda, atirei-me ao conhecimento doutros evolucionistas
notórios que seguiram as peugadas do atento filósofo de Farsfield Pewsey.
Para sobremesa, refestelei-me com o que, de ensinativo, recém-gerara
o espírito gaulês: Monsieur Gustave Le Bin, os pontífices da Escola dos
Altos Estudos Sociais, e restantes nomes apontados a tipo grosso nos
catálogos Felix Alcan, regalaram-me com a sua prosa clara, onde os mais
rígidos raciocínios são moldados numa linguagem em que há sempre o
atraente aroma do pó de arroz... Um fartote!
Ora nessa catadupa de doutrinarismo, já de si atordoante, porque
nela se imiscuíam os mais antagónicos princípios: (A Conquista do Pão,
de Kropotkine, em seguida às Cartas do Padre Didon; Os
Aforismos respigados em Nietszche, por Lichtemberg, a para da
Oração à Luz do Mestre Junqueiro; A Nova Teoria da Vida, de
Le Dantec, por cima de A Ideia de Deus, do eruditíssimo José
Sampaio; As Ideias de Platão, por Dantu, em convizinhança com as
ideias expendidas, num número do Diário das Câmaras, pelo Conselheiro
Pequito, a propósito... duma estrada para Pampilhosa do Botão), - veio
parar-me às mãos La Donna Delinquente, de Lombroso. Como
portuguesinho de têmpera, que o mesmo é dizer femeeiro, mal vi que se
tratava de mulheres - criminosas embora -, pus-me a ler atentamente o
alentadíssimo tomo. A denominação inicial era acompanhada por estoura
que de maior chamariz me serviu: La donna normale.
Esse libelo cerrado, em que o prestígio das filhas de Eva é
reduzido a cacos, foi o Alcácer Quibir dos meus idealismos de poeta
lírico, do meu beatífico enlevo ante a «obra-prima de
Deus»...
à inapagável impressão que tal obra me deixou, vieram juntar-se,
como pintainhos acorrendo ao milho, todas as semiapagadas invectivas que,
contra a mulher, tinha lido, desde certos versículos da Bíblia até
ao Pai de Strindberg.
Numa súbita reviravolta de Saulo, molhei em negra tinta uma pena
de guerreiro formato lança e, firmemente resolvido a arvorar-me em Trepoff
do feminismo - escrevi as sátiras que adiante imprimo, mas desbastadas,
agora, das suas mais cortantes arestas. Estas, e as que se extraviaram,
como mexeriqueiramente lhes contei.
Com o andar do tempo, curei-me da infecção de jacobinismo demolidor
que o antopólogo italiano me pegara; e, por virtude do «rítmico
recuo&raqui; que Spencer assinala «como necessária superveniência
de exageros radicais que necessários são também», vim ao convencimento
de que a magna caterva de defeitos que se infiltraram no coração da
mulher actual e que se afiguram como constitucionais (alguns, como a
mentira, classifica-os Lombroso de fisiológicos) são afinal e exclusivamente:
resultantes mecânico-anímicas da subalternidade em que sempre tem vivido
e da generalizada corrupção contemporânea. Que culpa teve a adúltera da
Sonata a Kreutzer de que a escolha duma noiva e a aceitação dum
marido se guiem pelas normais que o evengelista russo nos pinta? Um
provérbio da Itália diz que a mulher usa o engano com o boi usa dos chifres.
Naturalmente! A dissimulação é a arma da sua defesa e sensualidade é a do
seu ataque nas renhidas e triunfais batalhas dadas ao macho dominador.
Por isso e por muito mais, que prolixo se torna dar ao rol desde que,
como supremo argumento, se aponte o nível de degradante e mal disfarçada
escravidão em que ainda a colocam as mais avançadas leis - voltei a ser,
e não o antigo adorador do eterno feminino, pelo menos um amigo das
mulheres... Repeso e contrito, aqui brado urbi et orbi, pela boca
de Salomão, que «o riso é o erro» e que «vãmente o
mofador busca a sabedoria».
Mas olhem que não poucas destas sátiras têm algum tanto de parecido
com o que Eduardo de Artayett vincou numa imagem de génio:
Rindo, como uma lágrima que endoidecesse.Peço-lhes, pois, perdão, minhas senhoras.
Novembro de 1909